CNN teve acesso aos
requerimentos; juristas divergem e dizem que lei é dúbia sobre procedimento.
Em um ofício de 16 de março
de 2023, a que a CNN teve acesso com exclusividade, a Polícia Federal pediu ao
X dados pessoais de dois perfis do deputado federal André Fernandes (PL-CE). O
delegado Raphael Soares Astini deu um prazo de dois dias para que a rede social
respondesse.
O texto do requerimento cita
o artigo 2º, do parágrafo 1º da lei 12.830/2013 (que trata sobre investigação
criminal conduzida pelo delegado de polícia) e o artigo 10º, do parágrafo
terceiro da Lei do Marco Civil da Internet para fundamentar o pedido sem ordem
judicial.
O trecho da lei de 2023,
citado pela PF, diz que “ao delegado de polícia, na qualidade de autoridade
policial, cabe a condução da investigação criminal por meio de inquérito
policial ou outro procedimento previsto em lei, que tem como objetivo a
apuração das circunstâncias, da materialidade e da autoria das infrações
penais”.
O documento enviado ao X
pedia “nome, CPF, e-mail, endereços, terminais telefônicos utilizados e/ou
cadastros, dados bancários e do cartão de crédito cadastrados e logs de
criação, contendo IP, data, hora, fuso horário GMT/UTC e porta lógica da conta
do usuário”, no caso, o deputado André Fernandes (PL-CE).
O escritório Bastian
Advogados, contratado pelo X Brasil, respondeu à Polícia Federal e ao delegado
Raphael Soares Astini, por meio de um ofício em 5 de abril de 2023.
Após mencionar os artigos
10, 15, e 22 do Marco Civil da Internet, o ofício afirma que “as operadoras do
X estão impossibilitadas de fornecer os registros de acesso, até que seja
proferida uma ordem judicial fundamentada e com indicação de período e
descrição da utilidade, de forma a atender à exigência criada pelo legislador
para o regular trâmite do procedimento de quebra de sigilo”.
O ofício reproduz os artigos
citados do Marco Civil da Internet. O artigo 10, parágrafo 1º, diz que o
provedor só será obrigado a disponibilizar os registros mediante ordem
judicial.
O artigo 15 diz que o
provedor deverá manter os registros de acesso pelo prazo de 6 meses. O
parágrafo 3º do mesmo artigo afirma que a disponibilização ao requerente dos
registros deverá ser precedida de autorização judicial.
Já o artigo 22 diz que a
parte interessada poderá requerer ao juiz que ordene ao responsável pela guarda
o fornecimento do registro.
Esse mesmo artigo cita que
“o requerimento deverá conter, sob pena de inadmissibilidade, fundados indícios
de ocorrência do ilícito e justificativa motivada da utilidade dos registros
solicitados”.
Logo após citar os artigos
do Marco Civil da Internet, o representante do X no Brasil afirma que não pode
fornecer os registros.
“Operadoras do X estão
impossibilitadas de fornecer os registros de acesso, até que seja proferida uma
ordem judicial fundamentada e com indicação de período e descrição da
utilidade, de forma a atender à exigência pelo legislador para o regular
trâmite do procedimento de quebra de sigilo. (…) Não se trata de preciosismo
formalista, mas unicamente de observação atinente à obrigação legal imposta à
empresa no tratamento de dados de usuários”, diz o Twitter Brasil.
Nas páginas cinco e seis, o
documento cita o artigo 11, parágrafo 1º do decreto 8.771/2016, que regulamenta
o Marco Civil da Internet para afirmar que a plataforma não armazena dados
cadastrais. O artigo é reproduzido no ofício:
“§ 1º O provedor que não
coletar dados cadastrais deverá informar tal fato à autoridade solicitante,
ficando desobrigado de fornecer tais dados”.
Em seguida, a plataforma
afirma que “não há, portanto, dados a fornecer”.
O ofício do representante do
Twitter no Brasil volta a citar a legislação brasileira em seguida e fala que
dados disponíveis poderão ser apresentados mediante decisão judicial
fundamentada, em obediência aos dispositivos do Marco Civil da Internet.
“(…) destaca-se que inexiste
previsão legal no ordenamento jurídico brasileiro determinando que os
provedores de aplicação de internet preservem e forneçam conteúdo.
(…) Nesse contexto, o
TWITTER BRASIL informa que as Operadoras do Twitter procederam à preservação
dos dados atualmente disponíveis em seus servidores relativos aos usuários em
questão, e que poderão ser apresentados mediante decisão judicial fundamentada,
em obediência aos dispositivos do Marco Civil da Internet supracitados.”
Após o Twitter negar
fornecer as informações, a Polícia Federal descartou o pedido à plataforma.
O que diz cada lei
As investigações de perfis
nas redes sociais no inquérito das milícias digitais abriram uma discussão no
meio jurídico sobre a obrigatoriedade — ou não — de ordem judicial para acessar
dados privados dos usuários.
A CNN ouviu juristas
especialistas em Direito Digital que apontam divergência entre as leis 12.830,
de 2013, e o Marco Civil da Internet, de 2014.
A primeira não trata sobre a
necessidade de ordem judicial para um delegado acessar dados cadastrais e
endereço de IP para identificar o dono de um perfil nas redes. Já o Marco Civil
exige pedido da Justiça para investigadores acessarem esses dados.
A lei 12.830/2013 — que
trata sobre a investigação criminal conduzida pelo delegado de polícia — diz
que “cabe ao delegado de polícia a requisição de perícia, informações,
documentos e dados que interessem à apuração dos fatos”.
“Art. 2º As funções de
polícia judiciária e a apuração de infrações penais exercidas pelo delegado de
polícia são de natureza jurídica, essenciais e exclusivas de Estado.
§ 1º Ao delegado de polícia,
na qualidade de autoridade policial, cabe a condução da investigação criminal
por meio de inquérito policial ou outro procedimento previsto em lei, que tem
como objetivo a apuração das circunstâncias, da materialidade e da autoria das
infrações penais.
§ 2º Durante a investigação
criminal, cabe ao delegado de polícia a requisição de perícia, informações,
documentos e dados que interessem à apuração dos fatos”.
O trecho da lei 12.965/2014
(Marco Civil da Internet), que trata da proteção aos registros, aos dados
pessoais e às comunicações privadas, cita que o provedor será obrigado a
disponibilizar registros mediante ordem judicial.
“Art. 10. A guarda e a
disponibilização dos registros de conexão e de acesso a aplicações de internet
de que trata esta Lei, bem como de dados pessoais e do conteúdo de comunicações
privadas, devem atender à preservação da intimidade, da vida privada, da honra
e da imagem das partes direta ou indiretamente envolvidas.
§ 1º O provedor responsável
pela guarda somente será obrigado a disponibilizar os registros mencionados no
caput, de forma autônoma ou associados a dados pessoais ou a outras informações
que possam contribuir para a identificação do usuário ou do terminal, mediante
ordem judicial, na forma do disposto na Seção IV deste Capítulo, respeitado o
disposto no art. 7º.
§ 2º O conteúdo das
comunicações privadas somente poderá ser disponibilizado mediante ordem
judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer, respeitado o disposto
nos incisos II e III do art. 7º.”
Juristas ouvidos pela CNN
Para o advogado especialista
em crimes cibernéticos, professor de Direito Digital da FGV e presidente da
Comissão Nacional de Cibercrimes da ABRACRIM, Luiz Augusto Filizzola D’ Urso,
existe uma interpretação dúbia na lei.
“A meu ver, prevalece a
necessidade de ordem judicial para apresentação desses dados, uma vez que o
Marco Civil da Internet é claro, principalmente no artigo 10, parágrafo
primeiro, que a decisão para que se quebre IP tem que ser judicial e que o
delegado que deseje ter esses elementos no seu inquérito policial, que faça a
representação e encaminhe para o fórum.”
Para o advogado em Direito
Constitucional e especialista em Direito Digital André Marsiglia, uma
plataforma não deve ceder dados pessoais de um perfil sem uma autorização
judicial, porque pode ser responsabilizada na Justiça pelo próprio usuário.
“A polícia não pode fazer
uma solicitação sem autorização judicial. Os artigos 18 e 19 do Marco Civil da
Internet permitem a liberação de informações, mas teria que haver uma decisão
justificada, explicando a pertinência do pedido. E a justificativa não pode ser
sigilosa. A necessidade de uma decisão judicial é uma forma de proteção para a
plataforma. Se a plataforma cede os dados pessoais de um usuário, ela pode ser
responsabilizada frente ao usuário”, afirma Marsiglia.
Outros documentos a que a
CNN teve acesso também mostram que, após o Twitter negar o compartilhamento de
dados do parlamentar André Fernandes, a Polícia Federal descartou o envio de
dados do Twitter, já que a titularidade das duas contas na plataforma foi
confirmada pelo próprio deputado em depoimento em 9 de maio de 2023 à Polícia
Federal.
“Manifesto-me pela
desistência da diligência representada no Ofício (…), haja vista que perdeu seu
objeto, posto que, através dela, buscava-se a confirmação de titularidade das
contas do TWITTER vinculadas ao investigado, o que foi obtido com a própria
confirmação dele no seu depoimento constante nos autos do Inquérito
intitulado.”
Deputado federal citado
O deputado André Fernandes
(PL-CE) é alvo de um inquérito no Supremo Tribunal Federal por condutas que se
referem a postagens, em redes sociais, de um suposto incentivo aos atos do dia
8 de janeiro, recomendação da Procuradoria-Geral da República em janeiro de
2023.
No entanto, em julho de
2023, o subprocurador-Geral da República Carlos Frederico Santos recomendou o
arquivamento do inquérito policial por considerar que “replicar um conteúdo em
rede social conhecido por milhares torna impossível reconhecer o nível de
influência da postura do investigado”.
A CNN procurou o deputado
André Fernandes, o X e a Polícia Federal e aguarda um retorno.
Por: cnnbrasil.com.br
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